O paradigma bolivariano: reflexões antes do cantar do cisne

 Rafael Boulair

Ouvir o cantar de um cisne evoca um momento particularmente triste – o da morte do dito.

Uma morte anunciada é o que também se augura para a Revolução Bolivariana que caracterizou dezassete anos de chavismo naquele país.

Tão nefandos agouros não devem evitar uma análise contundente e consequente do governo que aí vigorou e da riqueza teórica e prática que lega a toda a esquerda.

Uma das questões fundamentais que divide a opinião dos progressistas é a da democracia. Muitos alegam esta não ser respeitada. Outros aduzem que o chavismo retirou ao Parlamento a sua importância e concentrou poderes na presidência. O governo conseguiu, no entanto, um incrível recorde de eleições ganhas, autárquicas, regionais, parlamentares e presidenciais – somaram-se exatamente dezassete sufrágios em dezassete anos. A democracia foi , portanto, uma forte aposta de Hugo Chávez e uma condição sine qua non que o governo se autoimpôs.

Dar voz ao povo, foi também o que a nova Constituição fez, cuja elaboração observou uma fortíssima participação popular e cujo conteúdo contempla avançados dispositivos de envolvimento popular no processo político, como é exemplo a figura da revogação de mandatos através da convocação de um referendo. Como se não bastasse, todos os organismos internacionais que supervisionaram os processos eleitorais dão conta de absoluta e rigorosa transparência. Por tudo isto, a Venezuela é identificável à democracia e não ao seu constrangimento.

À questão da democracia acrescenta-se o argumento sobre o mal-estar económico social que o povo venezuelano sofre. Não negaremos aqui a carência de bens de consumo que atinge duramente a população. Não devemos, porém, imputar quaisquer culpas ao governo, que se alguma responsabilidade tivesse, seria a de não ter nacionalizado a tempo os serviços de distribuição e abastecimento.

O que o país vive deve-se à guerra económica liderada pelos Estados Unidos e pela burguesia nacional, num contexto que faz lembrar o Chile de 1970-73.

Dito isto, uma crítica marxista à política geral do chavismo e do madurismo é perfeitamente legítima. Em dezassete anos não se aboliram a propriedade privada, mantiveram-se as relações sociais capitalistas e apelou-se à cooperação de classes entre os trabalhadores e os “empresários patrióticos”. É uma orientação que restringe a ação coletiva e impede deliberadamente que se abram novos caminhos de emancipação. A ausência de uma estratégia socialista e a desorientação económica, aliada ao feroz ataque de Capriles e da burguesia nacional não subtraem ao poder chavista as grandes conquistas sociais conquistadas – aumento dos salários, valorização dos direitos laborais, proteção do ambiente e dos povos indígenas.

Nas atuais condições, o governos encontra-se encurralado e as ruas espelham a cristalização da luta entre dois blocos opostos – os chavistas e os que querem regressar ao velho bipartidismo e aos programas neoliberais dos anos oitenta e noventa. Vivida e sentida como uma nova independência a experiência bolivariana não deixou de marcar o pensamento e a política à esquerda e ainda pode muito bem ter uma palavra a dizer, antes do cantar do cisne.


Imagem: The Photographer – Mural Chavez in Caracas. via Wikimedia Commons: CC0 1.0 Universal Public Domain Dedication.